25 de outubro de 2010

O que será que será numa estrada de Minas

Leg: M. Chagall: To my wife, 1915.
From the Chagall exhibition. Berlin. ([c1922-c1924])


Na estrada para Lambari, no sul de Minas Gerais, uma vez perguntei a meu pai o que queria dizer a canção O que será, que será, de Chico Buarque. O que é que andavam "combinando no breu das tocas"?

Estava em meados da década de 70 e para o meu pai todos os caminhos só levavam a dois lugares: à repressão ou à liberdade. Então ele foi rápido: _O que será? Será a liberdade, claro.

Eu era adolescente, e também só via dois caminhos em todos os sinais do mundo: o da repressão e o da liberdade. Sonhava sair de casa e carregar bandeiras. Fiquei muito satisfeita com a resposta e passei uns 20 anos ou mais diletando politicamente, descobrindo as zonas cinzentas, mas inspirada pela música e por todos os seus versos.

Já por volta dos 40, recebo uma ligação do meu pai, aflito, com uma novidade impressionante.
_ Aquela música, lembra? Eu errei, não era isso. Ou melhor, é isso, mas não é isso.
_ O quê, pai? Não entendi nada.
_ O que será, que será não trata da liberdade democrática, dos direitos políticos, do Congresso funcionando, da imprensa livre, do direito de greve, da reforma agrária. Na verdade, é sobre o desejo.


Ouvi de novo a música, de queixo caído com a clareza do novo sentido da letra. E com o tempo que a gente levou para enxergar essa pulsão óbvia e cristalina. Significado evidente na versão batizada de à flor da pele, muito mais sensual e até então bem menos popular. É incrível que tenha demorado tanto a me encantar com esse desdobramento das versões e dos seus significados. A música O que será, que será é de 1976, para o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos (Bruno Barreto), e teve três versões: a abertura; à flor da pele; e à flor da terra.

Hoje, a música se tornou ainda maior: tem o tesão, o desejo, tem a política, o inexplicável, tem o caos, tem a beleza, tudo o que a gente quer e merece, o prazer e suas verdades que não se deixam enquadrar. A gente é que não estava -- e acho que não estará nunca o bastante -- pronto para ela.
(Está aí o tratamento canhestro dado à pauta do tesão, do desejo e das demandas do corpo nessa campanha eleitoral. Como se pudessem correr por fora da vida...)

À flor da terra, à flor da pele, a música era e será, afinal, sobre a liberdade.

No site oficial de Chico Buarque estão as letras das canções, que merecem ser lidas e relidas sempre; e algumas notas sobre sua produção. Por exemplo, declaração do autor, publicada no livro 85 anos de Música Brasileira V. 2 (Ed.34): em 1992, "ao tomar conhecimento do conteúdo de sua ficha no Dops-DPPS, em que há uma análise de 'O Que Será', Chico Buarque declarou ao Jornal do Brasil: 'acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar...'"

A nota, aqui: http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=notas/n_zuza_flordate.htm

As letras:
O que será, que será (à flor da terra)
O que será, que será (à flor da pele)
O que será, que será (abertura)

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